sábado, 23 de dezembro de 2023

EM MODO ALEATÓRIO

Botão random do meu leitor de CD (2023)

 "ALEATÓRIO adj. Que repousa sobre um acontecimento incerto, fortuito: contrato aleatório. / Diz-se de uma grandeza que pode tomar certo número de valores, a cada um dos quais está ligada uma probabilidade."

in Dicionário Enciclopédico Koogan - Larousse - Seleções, Librairie Larousse, Paris, 1977

Adoro o conceito de aleatório. Adoro que as coisas possam acontecer sem uma ordem específica. Adoro o botão random do meu leitor de CD Marantz. Depois de colocar um CD na gaveta do meu Marantz, pressiono o botão random e aguardo curiosamente pelo que o destino terá para me oferecer naquele momento. Poderá ser apenas uma música que já bem conheço ou, então, uma faixa mais discreta que permaneceu ofuscada pela altivez das restantes até aquele preciso instante em que iria ter, finalmente, a grande oportunidade para se mostrar e cativar-me, possivelmente, com a naturalidade da sua essência. Já me aconteceu, por diversas vezes, e a realidade é que poderia nem sequer vir a prestar alguma vez a devida atenção a certas músicas caso o random naquele dia não tivesse acertado ali. Por vezes, é também uma oportunidade de redescoberta - uma música esquecida que por ali ficou, à espera de uma nova oportunidade. Aplico também este mesmo conceito no leitor MP3 do meu carro, em que a próxima música pode vir de qualquer uma das playlist lá inseridas e ser até de um estilo completamente diferente da música anterior. A ignota maravilha da imprevisibilidade.

Não é só na música que me delicio com o modo aleatório. Gosto também de retirar um qualquer livro da minha modesta biblioteca, abri-lo ao calha, e ler apenas o conteúdo dessa mesma página. Esta ação permite-me recuperar, por vezes, algumas passagens já esquecidas mas também pode estimular um novo sentido de compreensão do texto e relevar a sua importância. O efeito desta abordagem pode também resultar em alguma produtividade criativa, o que me leva à origem deste mesmo blogue que se baseou no princípio do conceito aleatório como temática principal para as minhas publicações - a ideia passava por retirar um livro da pequena biblioteca cá de casa, abrir uma página ao acaso e escolher um parágrafo, ou excerto de texto, dessa mesma página, que depois publicaria, associando uma música à minha escolha e uma fotografia de minha autoria, que seria inspirada pelo texto casual. O resultado final seriam as tais combinações em harmonias improváveis, que dão o título ao blogue.

Não sou apreciador da página online wikipédia (gosto de consultar os meus dicionários e enciclopédias) mas gosto imenso de um dos seus pormenores; a página aleatória, pois lá teria de ser. Ao acedermos ao menu principal, por entre algumas das opções disponíveis surge a incógnita possibilidade de se aceder a uma página aleatória. Gosto imenso disto porque fico automaticamente habilitado ao confronto com um indeterminado assunto, de uma qualquer temática, que poderá ser completamente absurdo ou extremamente interessante, inédito ou equívoco. E estou prestes a fazê-lo, para ver o que me sai na rifa ... neste momento ...
 
... "Jonas Brothers: Live: Walmart Soundcheck CD+DVD" ... 
"Jonas Brothers: Live: Walmart Soundcheck CD+DVD é o primeiro disco ao vivo dos Jonas Brothers, seu quinto álbum lançado com o selo Hollywood Records, e o terceiro álbum de 2009. Foi lançado dia 10 de Novembro, 2009 no E.U.A. somente na Wal-Mart por $9.00. Sem previsão de lançamento no Brasil."

Eis que me saiu um conteúdo de pouca, ou mesmo nenhuma, relevância, para mim. Esperava melhor. Mas foi desta forma que me submeti aos desígnios do destino e terei agora de suportar o desafio da sua proposta. Espero ter melhor sorte numa próxima abordagem.

P.S. - É mais interessante, e didático, consultar a wikipedia em língua Inglesa ...

                            "Live at Walmart Soundcheck" - Jonas Brothers (2009)


sábado, 11 de novembro de 2023

Que Novas Festas Novos Encantos Pedes? - JOSÉ ALBERTO VASCO


Há leituras que entusiasmam pelo conteúdo da história em si e há outras que prendem pelo forte caráter estilístico do seu autor. "Que Novas Festas Novos Encantos Pedes?", a recente novela histórica que José Alberto Vasco editou em Outubro de 2023, com selo da Editorial Novembro, detém a particularidade de ser um daqueles livros que consegue segurar o leitor pelas duas formas. Literatura de caráter arriscado e descaradamente atrevida, delineada num esquema muito próprio que evidencia um estilo bastante claro, preciso e muito direto, distintamente laureada com uma sintaxe rica e erudita capaz de conduzir a libertina fluidez de uma aventura "selvagem e perigosa", em que a distinta nobreza do Mosteiro de Alcobaça serve de cenário e intento para o desenvolvimento de grande parte da ação, sob os desígnios eróticos de uma desenfreada e estonteante carga de emotiva sensualidade hardcore a fazer lembrar algum do estilo de Miller. 

A novela desenrola-se em três atos, qual deles o mais apetecível, em que uma profana devoção, associada ao desejo íntimo e à desenvolta paixão de dois enamorados, se vai desenvolvendo sob a arrojada ambição de passar furtivamente uma noite no interior do Mosteiro de Alcobaça. Antes de se centrar no dito Mosteiro, a ação progride por alguns percursos, em jeito de viagem, com paragens para alguma gastronomia e sempre com direito a conhecer o cardápio local. O ritmo destas viagens desperta a libidinagem dos amantes que aproveitam algumas oportunidades insólitas para satisfazer as suas loucas e desmedidas aventuras. Mas será no interior do imponente Mosteiro Cisterciense, esse nobre antro de desejo insaciável, que a ficção se irá fundir com a história, a religião e o sobrenatural, através do delicioso desfile de episódios paralelos que revelam segredos divinos e quiméricos, havendo até lugar para uma recriação análoga do pecado original no laranjal que floresce no claustro do Mosteiro de Alcobaça. No entanto, o leitor nunca irá desfrutar da mesma sorte e privilégio que uma enclausurada sucessão de dinastias teve, para seu grande gáudio, de assistir in loco, do alto dos seu poleiros, a alguma da peripécia desta aventura ... e o que isto deu depois que falar ... 

Obra maior para José Alberto Vasco, de uma criatividade extraordinária, escrita com conhecimento, brio, e certamente alguma pesquisa, em que o desejo e a libertinagem sexual se conjugam com jogos factuais e geram uma história incrível. A música marca também a sua quota parte nesta novela histórica, ou não fosse o autor um conhecido e dedicado musicólogo, através de referências a músicas e concertos que fazem parte do itinerário da ação. E uma coisa é certa, quem ler esta novela e conhecer o Mosteiro de Alcobaça, não irá conseguir voltar a olhar para ele da mesma forma. 


                            "An Erotic Alchemy" - Moonspell (1995)


domingo, 22 de outubro de 2023

PORNOGRAFIA ALIMENTAR

Capa desdobrável interior do álbum 'Tres Hombres', ZZ Top (1973)
Fotografia de Galen Scott

A primeira menção ao conceito 'pornografia alimentar' foi feita em Dezembro de 1977, num artigo de Alexander Cockburn, intitulado 'Gastro-Porn', publicado numa edição da revista quinzenal norte-americana 'New York Review of Books'. No entanto, a autoria do termo 'food porn' é atribuído à crítica feminista Britânica Rosalind Coward, que utilizou a expressão no seu livro 'Female Desire', em 1984. 

Nos dias que correm, quem é que não foi ainda confrontado com a orgulhosa fotografia duma refeição acabada de confecionar lá por casa ou com a provocante imagem de um radioso prato acabado de servir à mesa num qualquer restaurante, ou tasco, algures por aí? A concupiscência deste momento terá sido despertada, certamente, pela simpatia de algum familiar, pelo entusiasmo gastronómico de um amigo ou até pela simples partilha do amigo de um amigo, cuja divulgação se disseminou indiscriminadamente pelas várias redes sociais, incitando a inveja e o desejo em possuir algo que apenas se vê mas não se toca. Mas, na realidade, qual a probabilidade de nos excitarmos com a fotografia de um prato de comida? 

A arte de fotografar comida, de modo a despertar um louco apetite por algo que apenas é sugerido sob a forma de uma imagem, consiste fundamentalmente na cuidada e atenta preparação de um prato, com retoques de esmero e criatividade. A tonalidade das cores atrativas, o molho que escorre luzidio, o detalhe precioso da apresentação das peças e uma decoração feita com muito gosto e requinte, podem estimular o desejo ardente de possuir um belo naco de carne que ali se apresenta tenro e delicioso. A suave luxúria de uma travessa de peixe bem arranjada pode fazer crescer água na boca, a sedução de um exuberante prato de vegetais pode tornar-se simplesmente irresistível e há até aquela libidinosa sopa aveludada em que gostaríamos de penetrar fundo e suavemente com os desígnios de uma mera colher. 

Mas em 1973 os texanos ZZ Top não tiveram nada disto em conta, quando tudo o que precisavam  para completar a composição gráfica da capa desdobrável do seu terceiro álbum de originais, "Tres Hombres", era apenas de uma imagem que fizesse referência ao México, como forma de retratar a inata relação da banda com a proximidade da fronteira do país. O trabalho gráfico seria então concluído com a deslumbrante fotografia captada por Galen Scott no seu estúdio, e acima reproduzida, que representa uma refeição Tex-Mex no seu esplendor de cores, iguarias e acepipes.

A confeção e preparação deste potente festim alimentício foi feita pelo 'Leo's Mexican Restaurant', então situado em South Shepherd, Houston, USA, e local de eleição do trio. Mesmo não aparentando que houvesse algum esmero na organização desta tumultuosa provocação gastronómica, a mesma tem capacidade para criar água na boca e despertar um incómodo apetite de provar a orgiástica refeição. O festim seria ainda adornado com um rádio antigo, que a banda sintonizou na estação 'XERF, 1570', uma das suas estações de radio preferidas, de fundo sobressai a gloriosa imagem de uma 'Adelita', o ícone que representa todas as mulheres que lutaram na revolução Mexicana, e a inclusão de uma garrafa de cerveja Southern Select, propriedade da celebridade texana Howard Hughes, completa a representação.

Contudo, nenhum dos intervenientes na sessão teve oportunidade de provar tamanha refeição. Ao regressarem ao estúdio, após uma pausa de 15mns, depararam-se com a imagem real do pastor-alemão de Galen Scott deitado de lado e ofegante, depois de se ter refastelado com a bendita refeição. Não sobrou nada. 

Mais recentemente, em 2016 , o chef Thomas Micklethwait, grande mestre do barbecue e proprietário da empresa de restauração 'Micklethwait Craft Meats', sediada em Austin, Texas, USA, recriou pormenorizadamente a magnífica refeição que os ZZ Top mostraram ao mundo em 1973 e no final da obra satisfez-se sozinho com a sua integral degustação. A recriação foi filmada, do princípio ao fim, por David Bessenhoffer que depois editou o pequeno trailer 'ZZ Tom in Tres Hombres', com a música "La Grange" a servir de banda sonora, e do qual aqui deixo o respetivo vídeo.

                           "ZZ Tom in Tres Hombres" - David Bessenhoffer: camâra e edição / Thomas Micklethwait: chef e comedor (2016)

domingo, 17 de setembro de 2023

O Grito de Dragula, A Gárgula Drago

Mosteiro da Batalha, Batalha, Portugal (2018)

A sequência direcional e repetitiva do grito de Dragula expande-se num eco de formas redundantes que se metamorfoseiam na progressão de uma linha contínua, dirigida ao alinhamento de uma imensidão desconhecida. Mas penso, essencialmente, na impureza do hálito fétido do dragão, que afinal até poderá ser peixe ou mesmo ave, e que mesmo solidificado impregna infinitamente as pedras do velho mosteiro.


                            "Dragula" - Rob Zombie (1998)