domingo, 1 de novembro de 2020

FLORES DO MAL

Igreja de S. Francisco, Porto, Portugal (2016)

                                                                  CX

UMA MÁRTIR
DESENHO DE UM MESTRE DESCONHECIDO

Pelo meio dos frascos, de estofos brilhantes
E dos móveis voluptuosos,
Entre mármores e quadros, vestidos fragrantes
Rojados plo chão, sumptuosos,

Numa tépida alcova onde, tal como em estufa,
O ar é perigoso e fatal, 
Onde os bouquets, morrendo em seus caixões de vidro,
Exalam o seu sopro final,

Sem cabeça, um cadáver derrama, qual rio,
Sobre a almofada já sem sede
Um sangue bem vermelho, pla tela bebido
Com a avidez de um prado seco.

Semelhante às visões que se criam na sombra
E que nos prendem sempre os olhos,
A cabeça, com o monte de sombrio cabelo
E as suas jóias preciosas,

Na mesa de cabeceira, tal como um ranúnculo,
Repousa; e, sem pensar em nada, 
Um olhar branco e vago, tal como o crepúsculo,
Escapa dos seus olhos em alvo.

Na cama o corpo nu, sem escrúpulos, expõe
No abandono mais completo
A beleza fatal e o secreto esplendor
Que lhe ofereceu a natureza;

Na perna, ornada de oiro, uma rosada meia
Ficou-lhe como uma lembrança;
A liga, como um olho secreto e em chamas,
Dardeja um olhar de diamante.

O aspecto singular daquela solidão
E de um retrato langoroso,
Aos olhos provocantes como a sua pose
Revela um amor tenebroso,

Alegrias culpadas e festas estranhas
Cheias de beijos infernais,
Que enchiam de prazer o enxame dos maus anjos
Entre as pregas dos cortinados;

E no entanto, ao ver a magreza elegante
Daqueles ombros bem recortados,
A cintura fogosa e as salientes ancas, 
Tal como um réptil irritado,

É bem jovem ainda! - A sua alma exasperada
E, gastos plo tédio, os sentidos
Ter-se-iam aberto à matilha açulada
De errantes desejos perdidos?

O homem vingativo que não foste, em vida,
Capaz de saciar com amor,
Satisfez nessa carne inerte e permissiva
A imensidão do seu desejo?

Responde, impuro corpo! e plas rígidas tranças
Como braços febris erguendo-te,
Cabeça assustadora, diz se ele nos teus dentes
Quis colar o supremo adeus?

- Longe dos comentários, tão longe da turba
E dos magistrados curiosos,
Dorme em paz, dorme em paz, estranha criatura,
No teu sepulcro misterioso;

Corre mundo o teu esposo, e a tua forma imortal
Vela junto dele quando dorme;
Tal como tu, decerto ele ser-te-á fiel,
Sempre constante até à morte.

in "As Flores Do Mal" de Charles Baudelaire (Tradução de Fernando Pinto do Amaral) (1857)


                            "Dark Entries" - BAUHAUS (1980)


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