| Água Formosa, Vila de Rei, Portugal, 2021 |
Chegámos à aldeia pelo meio da manhã. O calor abundava e imiscuía-se facilmente por entre a esparsa ramagem das poucas árvores que por ali prosperam. A aldeia estende-se, logo abaixo de nós, na pequena confluência de novos e velhos telhados que cobrem servilmente a resistente frieza das casas de pedra. Ouve-se, algures, um correr de água antecipando a ágil generosidade de uma límpida corrente aquífera por onde escorre a frívola inocência de um leito naturalmente sinuoso. Nas colinas circundantes, as cabras vagueiam pela verdejante inclinação de uma pachorra rotineira. Ninguém as guarda.
Descemos ordenadamente à aldeia. Sem pressa, percorremos as ruas estreitas por onde esmorece o silencioso desgaste das pedras na vaga solidão das poeiras esquecidas, que o tempo abandonou. Atentei no demorado perfil da pedra corroída que denuncia o penoso efeito da erosão persistente e acentua o desconsolo do esquálido interior de um velho lar, onde ainda permanece a cândida altivez de um humilde altar que não passa agora de um distinto pormenor na parede. O contorno aparente de uma miragem de fé impiedosamente esquecida.
Enquanto preparava o enquadramento de uma perspetiva, alguém bradou - São pedras, senhores! São pedras! - mas não havia o mínimo vislumbre do autor deste súbito clamor. Curiosa abordagem, entretanto revelada pela inesperada silhueta acrobática de um ser de baixa estatura que se movia, descontraído, na nossa direção, em hábeis movimentos de flique-flaque à frente, intercalados com movimentos circulares de rodada, entoando a cadência de uma divertida cantilena - Hei! Ho! _ Uh, la la! _ Hei! Ho! _ Uh, la la! - Ao chegar bem junto de nós, deparámo-nos perante a espantosa aparência de tão estranha personagem que tanto sugeria um duende como um arlequim.
De feições demoníacas, marcadas pela vincada aspereza dos anos, esta fantástica figura causou, por momentos, alguma apreensão mas a vivacidade do seu comportamento denunciava a mentalidade de uma criança traquina que apenas pretendia divertir-se. No entanto, acabou por revelar-se insolente e muito arisco. Corria desembaraçadamente por entre as nossas pernas e dava beliscões, com um manifesto delírio de gargalhadas histéricas e soluçadas. Perante tão pitoresco momento decidi fazer uma foto mas ao aperceber-se da objetiva apontada, aquietou bruscamente e fitou-me desconfiado. Aproximou-se com atenta curiosidade. Senti o emanar do forte impulso da sua energia magnética, ao ponto de nem chegar a disparar o obturador da câmara, que bem tentou arrancar das minhas mãos. A minha resistência arreliou-o e ele retribuiu com a determinação de um doloroso pontapé na minha canela.
Perante a contestação geral de tal atitude, correu rapidamente para as ruínas da casa mais próxima, subiu desajeitadamente pelo amontoado de pedras, e desapareceu nas entranhas do seu interior. Os nossos olhares entrecruzaram-se na perplexidade da incerteza deste momento tão surreal e ninguém sabia o que dizer. Curiosamente, a minha canela já não doía, nem havia vestígio do pontapé que todos presenciaram in loco. Ao redor, não havia ninguém que nos pudesse explicar quem era realmente esta personagem e ao que veio. Acabámos por rir da situação e eu voltei a preparar o enquadramento da perspetiva interrompida; a distinta perfeição do corte curvilíneo que aparentava ter sido um altar ... ou talvez uma janela.
Deixámos a pequena aldeia pelo final da manhã. O calor estava agora mais intenso. Para trás ficaram as pedras tisnadas, solidificadas na rígida degradação de uma pesada herança lapidar, as cabras, que permaneceram no pasto de uma serenidade rotineira, e a estranha memória daquele momento absurdo. Assombração? Alucinação? Brincadeira local? Liguei o MP3 do carro - Bob Dylan com The Band cantavam "How does it feel, How does it feel? / To be without a home, with no direction home / Like a complete unknown, like a rolling stone" - e ao arrancar ouviu-se ainda distintamente, no embrenhado da vegetação adjacente - São Pedras, senhores! São pedras!
"Like a Rolling Stone" - Bob Dylan/The Band (1974)
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