«Passam. Deixa-te apanhar um bocado de sombra e verás.»
Cigarra teve um sorriso desiludido:
«Tudo isto é a malvada da úlcera a dar sinal. Conheço-a bem. Ainda ela não começa a roer já eu a sinto.»
«Nesse caso, talvez seja melhor pararmos no Retiro. Podemos mandar vir um caldo, como da outra vez.»
«Um caldo?»
«E então? Um caldo é remédio santo. Pelo menos é o que tem acontecido. Palavra que se não fosse a questão do meu compadre nunca nós fazíamos uma viagem destas. Maldita a hora em que eu me fiei naquele velhaco.»
Dum modo geral, António Grácio conversava com o companheiro sem o olhar. Assim aconteceu agora. Disse o que tinha a dizer e depois assoprou duas ou três fumaças desesperadas. Não tardou muito, já estava outra vez a falar mas para dentro, em silêncio. Discutia possivelmente com ele mesmo e com o seu destino traidor. «Vida dum capado», repontava a meio dessa conversa que só ele sabia; e continuava em frente, a cabeça enterrada nos ombros, os olhos fitos nas duas sombras atarracadas que deslizavam no alcatrão.
Essas sombras resumiam para ele a estrada, as sombras e a bengala do amigo marcavam o andamento da viagem. Cigarra, por sua vez, ia retardando o passo. Sabia que tinham chegado às primeiras árvores por causa da frescura que pousara sobre ele e também pelo ruído dos pés ao pisarem uma ou outra folha seca.
Mas o calor ainda não desaparecera de todo. O ar continuava abafado, ar de trovoada; as árvores para ali estavam paradas, na esperança de uma brisa que não chegava. Lá quando calhava desprendia-se uma folha, uma só, e vinha lentamente, lentamente, espalmar-se no chão.
...
in "Jogos de Azar" de José Cardoso Pires
O Movimento Parado Das Árvores - ANTÓNIO PINHO VARGAS (1989)
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